sábado, 31 de outubro de 2015

O Sorvete, por Carlos Drummond de Andrade

O sorvete 
Carlos Drummond de Andrade - No livro "Contos de Aprendiz".

"Quando chegamos ao colégio, em 1916, a cidade teria apenas cinqüenta mil habitantes, com uma confeitaria na rua principal, outra na avenida que cortava essa rua. Alguns cafés completavam o equipamento urbano em matéria de casas públicas de consumação e conversa, não falando no espantoso número de botequins, consolo de pobre. As ruas do centro eram ocupadas pelo comércio de armarinho, ainda na forma tradicional do salto dividido em dois: fregueses de um lado, dono e caixeiros do outro; alfaiates, joalherias de uma só porta, agências de loteria que eram ao mesmo tempo pontos de venda de jornais do Rio ostentavam cadeiras de engraxate. Um comércio miúdo, para a clientela de funcionários estaduais, estudantes, gente do interior que vinha visitar a capital e com pouco se deslumbrava. O centro da aglomeração social, concentrando todos os prestígios, impondo-se pelas seduções que emanavam de cartazes coloridos, que nos pareciam rutilantes e gigantescos, e beneficiando-se à noite (contavam-nos) com a irradiação dos focos luminosos dispostos em fieira na fachada, era o cinema. Para ele convergiam, nas matinês de domingo, rapazes e moças de boa família, facilmente reconhecíveis pelo apuro do vestuário como pela distinção e superioridade naturais da atitude. A um simples olhar de meninos do interior, como éramos nós, identificava-se a substância particular de que se teciam as suas vidas, roupas, hábitos, e, se não fosse muita imaginação, o seu próprio enchimento físico. Tanto é certo que o homem da cidade oferece à admiração desarmada do morador da roça, que, entretanto a repele por instinto, a receia e a inveja, a expressão de um modelo ideal inatingível, em que se somam todas as perfeições possíveis, síntese que é de refinamento produzido pela cultura, pelo asfalto, pela eletricidade, pelo Governo e por tantas outras entidades poderosas. Quanto ao aspecto no turno do cinema, abstenho -me referi-lo diretamente, porque o colégio não nos permitia sair à noite, e só alguns anos depois pude fazer a experiência da sua frequentação, de certo com olhos já influídos por uma penetração maior de outras visões da cidade, e abolida em parte a virgindade áspera das minhas sensações de quase aldeão. Alunos internos, dispúnhamos apenas dos domingo para os nossos passeios isentos da censura colegial, no espaço de tempo que se confinava entre - a conclusão da missa das oito e o toque de sineta para o estudo das seis da tarde. Abria-se pois à nossa frente, se o nosso comportamento se houvesse mantido em nível tolerável durante a semana, um dia de solou de chuva, e visitas tediosas a parentes ou de prazeres insuspeitados, de bom ou mau emprego, mas inexoravelmente limitado na sua parte final: o atraso na volta constituía infração punida com reclusão no domingo seguinte, e apenas era tão grave que não nos animávamos a enfrentá-la. Ficava assim, no centro de nossa fuga- hebdomadária, o maravilhoso cinema, em sua sessão das duas horas da tarde, suas fitas americanas ainda destituídas de sofisticação, seus vendedores sibilantes de balas e de amendoim torrado, a hipótese algo desconcertante de um palco extra com bailarinas, tudo pela quantia assaz considerável de mil e cem réis. Considerável, dada a exiguidade do nosso orçamento infantil, que a munificência paterna jamais ousaria transpor, à vista do que expressamente regiam os estatutos: "Os senhores pais não deverão de modo algum fornecer dinheiro aos educandos, salvo o destinado a pequenas despesas, o qual ficará sob a guarda do estabelecimento"; e esse dinheiro, aí de nós ainda era menor do que nossas mesquinhas despesas. Eu tinha onze anos, Joel, treze, o que, além do tamanho, lhe bastava para se atribuir definitiva autoridade sobre mim. Na realidade, Joel era meu comandante. Já exercia o comando na cidade, minha onde crescêramos amigos inseparáveis; diante do espelho da "cidade grande", minha timidez xucra apoiava-se na capacidade de resolver, dirimir e providenciar, atributos que sempre me faleceram. Quando meu pai se decidira a internar-me naquele colégio distante, o pai de Joel considerou que devia dizer o mesmo com seu filho. O prazer que isso me causou não vinha somente de que eu teria a meu lado o amigo mais agradável e com quem me entendia melhor; era ainda como se eu vagamente considerasse Joel um protetor, um guia cômodo, e pressentisse nele o escudo contra os perigos ainda nebulosos da vida no internato e na capital, e, porque nebulosos, maiores. Eis-nos pois, eu e Joel, num domingo de março, nosso mofino dinheiro no bolso, à cata de sensações amáveis cuja recordação nos servisse para povoar o terreno baldio da semana seguinte; por que, tanto quanto posso certificar-me do meu espírito infantil de trinta anos atrás, e do de meu companheiro, o que buscávamos era menos um prazer concreto a possibilidade de armazená-lo, de prendê-lo numa espécie de vaso transparente onde se tornasse definitivamente objeto de contemplação e referência; era em suma!.. como afinal para tanta gente de espírito infantil ou adulto, matéria para recordação, que compensasse as horas de ócio, desânimo. Ou trabalho, quando não simplesmente que se pudesse exibir a colegas menos afortunado porque passaram presos o domingo: "Eu fiz isto, e você não; fui ao circo, e você não; e até - vantagem dramática - machuquei uma perna, e você não!" Mas a própria aventura exige um roteiro, nós o sabíamos por intuição; e o nosso fora pacientemente concebido nas conversas de recreio e através de bilhetes silenciosos passados entre as carteiras, na sala de estudo. Em síntese, nosso domingo se comporia de: ida a pé para a cidade, a fim de acumular recursos, e fazer um pouco de exercício; passeio no parque, com inspeção dos bichos ainda não conhecidos e exame mais minucioso de um gavião-de-penacho não suficientemente apreciado da primeira vez; almoço em casa de meu tio; jogos no quintal com os primos; matinê de cinema; gulodices compradas a um doceiro de rua e comidas num banco de jardim; passeio pela cidade, talvez uma excursão de bonde ao subúrbio; e volta. Esse programa não era suscetível de variar muito nos domingos subseqüentes, mas pareceu-nos de uma sublime originalidade, e enquanto batíamos a pé pela rua plantada de mangueiras, íamos prelibando o gozo que sua execução nos proporcionaria. Sim, nenhuma das operações de que se compunha o programa parecia por si mesma extraordinária, mas, à medida que se iam consumando, ficavam registradas em nós como outros tantos episódios memoráveis, cujo esplendor atravessaria as horas mornas, projetando-se para além da mediocridade de nossos destinos. Não distinguíamos bem os elementos da paisagem, nas ruas arborizadas que palmilhávamos, mas esses elementos se inseriam automaticamente em nós, e nos sentíamos capazes de fornecer aos colegas uma descrição abundante de tudo quanto passara despercebido à nossa visão imediata; visto de perto, o gavião-de-penacho não tinha o porte real que lhe atribuíramos, mas, já recuado no espaço e na percepção comum, recuperava a majestade; o almoço em casa de tio Lucas era talvez um bom almoço, mas, porque em estado de reminiscência, enchia-se de pratos e temperos que nele não figuravam de fato; e o cinema ... A caminho do cinema, a dois passos dele, na rua principal, está a confeitaria, a cuja porta é grato a gente deter-se, ante as formas caprichosas e coloridas que ali se dirigem simultaneamente a vários sentidos. Certos bolos e cremes, antes de serem degustados pela boca ávida, o são pelo nariz e pelos olhos, e, se no-lo permitissem, o seriam pelas mãos, que amariam verificar a maciez, a doçura e a delicadeza da pasta. Único sentido não beneficiado, o ouvido permaneceria alheio a essa fruição geral, se não chegassem até ele os ruídos normais numa casa onde se comem, choque de louça no mármore, de metais na louça, pequenos rumores familiares a que se ligam imemorialmente as sensações do paladar, e que tanto contribuem para a composição desse extraordinário prazer de comer. Estávamos absortos na contemplação ritual, misto de atenção a formas simbólicas, e de sonho em torno de ideias complexas que elas sugeriam - ali, diante daqueles pudins e daqueles roxos, amarelos, solferinos, verdes e róseos montículos de açúcar, geleia, ovo, frutas cristalizadas e invisível manteiga, quando um objeto vulgar, mas insólito no lugar onde se achava, me captou o interesse. Encostado a uma das três portas da confeitaria, do lado da calçada, um quadro-negro propunha-nos os seguintes dizeres em giz branco: 

HOJE
Delicioso sorvete de ABACAXI
Especialidade da casa 
HOJE! 

A inscrição emocionou-me intensamente, e dei conta a Joel de minha perturbação. - Você está vendo? Aparentemente, Joel não se deixara invadir pelo sortilégio das palavras. Sua superioridade! - "Delicioso sorvete de abacaxi ... " Nunca tomei disso. - Eu também não - respondeu o fortíssimo Joel. - Deve ser porcaria. Eu sabia que Joel falava da boca para fora, e que a ideia de sorvete, exposta de maneira tão súbita, e tão estranha a ele quanto a mim próprio, não lhe podia ser indiferente, e muito menos repugnante. Maliciosamente, procurava cativá-lo no interesse de uma profunda alteração de nosso programa. A saber: cancelaríamos a sessão de cinema, e com os fundos disponíveis atacaríamos o sorvete de abacaxi. Notei que outra coisa não desejava Joel, mas é da psicologia do chefe, que muitas vezes prefere conceder por magnanimidade o que contava fazer de vontade própria. Na realidade, o chefe não concede nunca, mas parece estar sempre se dobrando; e assim cultiva ilusões úteis. Meu desejo de trocar o cinema pelo sorvete era porém tão evidente, que Joel receou talvez satisfazer o seu de um modo que parecesse capitulação real a um subordinado. Estas coisas imagino hoje, porque então não achei sentido na firmeza com que ele comandou: - A gente já tinha resolvido ir ao cinema, agora o jeito é ir. a sorvete fica para domingo que vem. Sem Joel, eu não me arriscaria à aventura do sorvete. Entre duas privações, a do sorvete e a de Joel, resignei-me àquela. E a campainha da porta do cinema, como cigarra, zinia. Pois vamos! Mas, quem disse que o desenho animado, com Mutt e Jeff engatinhando as primeiras tentativas de fixação da personagem ideal, em preto e branco, lograva prender-nos? Quem disse que a comédia de Carlito ... ? A mais simples comparação de dois prazeres deteriora o que estamos desfrutando, e oferece o risco de corromper o segundo, se chegamos a atingi-lo, pela indisposição em que nos deixou a frustração do primeiro. No escuro, eu procurava encontrar no rosto de Joel a tristeza do sorvete frustrado, e se tal sentimento não se manifestava de maneira irrecusável, a verdade é que pelo menos tivera suficiente poder para eliminar todo indício de satisfação ante as proezas espetaculares que William Farnum desenvolvia na tela, salvando Louise Lovely - ou seria talvez outro astro, outra estrela. Arrependimento da proibição imposta a si mesmo e a um amigo, insatisfação, espírito de aventura, volubilidade da alma humana, ou qualquer outro móvel não esclarecido, o certo é Joel, catucando-me o braço, murmurou: - Vamos lá, vamos? Eu sabia que "lá" era a confeitaria, pois o sorvete de abacaxi entrara comigo no cinema, sentara-se na minha cadeira e embora o soubesse frio, queimava-me. Fomos à confeitaria, templo misterioso onde se ocultava, na parte dos fundos, vedada por uma portinha de vidro opaco, a essência imanente à coisa ou palavra sorvete, e que meus pobres sentidos se aguçavam para interpretar. O garçom depositou cuidadosamente sobre a toalhinha alva dois copos cheios de água, dois guardanapos de papel, com florezinhas pálidas, e duas tacinhas de vidro, contendo, cada uma delas, meia esfera de uma substância alva e brilhante. Crianças de cinco desprezarão minha narrativa; e já ouço um leitor maduro, que me interrompe: "Afinal este sujeito quer transformar o ato de tomar sorvete numa cena histórica?" Leitor irritado, não é bem isso. Peço apenas que te debruces sobre esta mesa a cuja roda há dois meninos do mais longe sertão. Eles nunca haviam sentido na boca o frio de uma pedra de gelo, e, como todos os meninos de todos os países, se travavam conhecimento com uma coisa de que só conhecessem antes a representação gráfica ou oral, dela se aproximavam não raro atribuindo-lhe um valor mágico, às vezes divino, às vezes cruel, em desproporção com a realidade e mesmo fora dela; um valor independente da coisa e diretamente ligado a sugestões de som, cor, forma, calor, densidade, que as palavras despertam em nosso espírito maleável. Como posso reconstituir agora tudo o que nós criáramos, para nosso próprio uso, em torno da palavra sorvete, representativa de uma espécie rara de refresco, que às pequenas. cidades não era dado conhecer; e cruzada bruscamente com a nossa velha e querida palavra abacaxi, ambas como que envoltas, por uma astúcia do gerente da confeitaria, na seda fina e macia da palavra "delicioso"? A carga de simpatia e sensualidade com que me atirei - nos atiramos - às meias esferas trazia talvez em si o germe da decepção que logo nos assaltou. O sorvete era detestável, de um frio doloroso, do qual se excluía toda lembrança de abacaxi, para só ficar a ideia de uma coisa ao mesmo tempo pétrea e frágil, agressiva aos dentes, e, mais para além deles, a uma região íntima do ser em que está o núcleo da personalidade, sua mais profunda capacidade de gozar e sofrer. Era uma dor universal o que ele espalhava, e tão rápida e difundida como se invadisse no mesmo segundo, por mil filamentos, toda a rede nervosa ... Lágrimas subiram-me aos olhos. No rosto de Joel, também o sofrimento se desenhava. Evidentemente, era impossível continuar com aquilo, e tínhamos de resolver no espaço de alguns instantes, perante o olhar talvez malicioso dos frequentadores, do garçom, do caixa, o problema de liquidar com o sorvete sem ser por via de ingestão, ao lado de outro problema, oh, tão mais penoso, o da transformação imediata do nosso lírico conceito de sorvete numa triste noção experimental, erma de toda satisfação física ou estética ... Mas como fazer desaparecer um objeto de difícil transporte e conservação, num lugar público? Pergunta que os assassinos devem formular-se, fechados no quarto com o cadáver; os mais sinistros e engenhosos expedientes têm malogrado. Em certo sentido, nós nos sabíamos criminosos, porque, insisto, o homem do campo, a sós com as complicações da cidade, é sempre débil; éramos debilíssimos. E nada mais triste do que reparar na tranqüilidade esmagadora que os da cidade assistem à nossa angústia insolvável. "Por que pediu sorvete? Se não ia gostar?! E por que não gostou? É admissível que alguém não goste de sorvete? Logo de abacaxi! Especialidade da casa!" O caixa saíra do trono para dizer-me isso com a mão direita coçando o queixo e o bigode ... Olhava-me com desdém e reprovação. Não, não saiu nem disse nada. Mas eu ouvia dentro de mim suas palavras, a vergonha que elas fariam derramar sobre minha família - o filho do Coronel Juca não gosta de sorvete de abacaxi: ele teve coragem de ir a uma confeitaria elegante, pedir um sorvete e estragá-lo: e minha boca doía com a lembrança daquele gelo ardente e cáustico. Então reatacamos o sorvete, mas ele continuava intragável. A verdade é que, sem noção alguma de como ingeri-lo, nós pretendíamos absorvê-lo a dentadas, em grandes porções que levavam consigo o pânico de um motor de dentista. O céu da boca era um teto fulgurante de dor: e o pior é que, eu bem o sentia, essa dor era ridícula. Renunciei antes de Joel à empreitada de amor-próprio; que o garçom e o caixa me matassem, mas não "comeria" mais aquilo. Olhei firme para meu amigo, que, por ser de ânimo mais rude do que eu, ou por haver descoberto instintivamente a técnica de tomar sorvete sem dor, ou finalmente por temperamento de chefe, continuava levando a colher à boca, a meia bola de neve já solapada. Joel percebeu meu desconforto sem apoiá-lo, e com um olhar peremptório baixou-me esta ordem, entre dentes: - Acabe com isso se não quer ficar desmoralizado. Era um pensamento, uma noção dos Mendonça, formada na educação burguesa de várias gerações, que ele ministrava a um membro de outra família não menos rica de princípios respeitáveis, os Caldeira Lemos. Uma reputação pode perder-se com à menor prova de fraqueza. Há um orgulho de família, de pessoa, que o indivíduo recebe no berço e tem que sustentar. Joel tirava seu comportamento, numa situação assim imprevista, do corpo de doutrina dos Mendonça, e me lembrava que eu devia fazer o mesmo. Sucede que aquilo que nos é penoso fazer, por iniciativa própria, mas sabemos necessário, se torna fácil de executar quando um poder estranho no-lo determina. Todo o encanto do sorvete estava perdido. Mas restava um dever do sorvete a cumprir, um dever miserável. Refreando as lágrimas, o desapontamento, a dor que um filho de boa família não pode sentir em público, mastiguei as últimas porções daquela matéria atroz. Joel olhou-me de novo, já agora aprobativo e cordial. Ele também sofrera bastante, mas a vida é um combate. O garçom aproximou-se. Joel pôs a mão no bolso, perguntou quanto era. O dinheiro não chegava."








Carlos Drummond de Andrade
* 31 de outubro de 1902
† 17 de agosto de 1987

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